GRACILIANO PARA O PÚBLICO INFANTIL


GRACILIANO PARAS O PUBLICO INFANTIL


Profª Ms. Vera Dias


Como pesquisadora, tenho lido muita coisas interessante visando escrever meu futuro projeto de doutorado um filão pouco explorado que é a visão de Graciliano Ramos para a Literatura Infantil. O seu conto "A Terra dos Meninos Pelados" e um outro também bastante interessante intitulado "Minsk".

Assim como Graciliano, creio que escritores deviam parar de achar que criança é burra. Deveriam dar mais valor à literatura infantil e seus grandes autores. Não é porque é literatura infantil que livros ingênuos e mal feitos devem ser aceitos fazendo vista grossa.
Literatura é arte, acima de tudo, em todos os seus campos.
Autores que se voltaram para esse público como Ursula K. Le Guin, Lewis Carroll, Tove Jansson, L. Frank Baum, para citar alguns, isso apenas no campo fantástico. Artistas maduros que escrevem para crianças sem apelar pra suposta burrice das mesmas. Fora os livros infantis de gente do calibre de um Graciliano Ramos, com A Terra dos Meninos Pelados.


Publicado pela 1ª vez em 1937, 'A Terra dos Meninos Pelados' aborda diferença, tolerância e respeito - e nunca foi tão atual.

Referido sempre como um escritor de linguagem enxuta, despojada, Graciliano Ramos representa para a literatura brasileira uma literatura adulta, voltada para a temática da condição humana, universalizando-se a partir de personagens e cenários regionais. O autor de romances como Vidas secas , Angústia , São Bernardo , com personagens densos e marcantes, é, no entanto, pouco citado como autor de histórias para crianças. Suas produções voltadas para o público infanto-juvenil, porém, apresentam uma proposta ideológica que em anda difere do que caracteriza sua literatura para
adultos: a opção por temas universais, questões sociais, a apresentação do ser humano com suas verdades, suas mazelas, seus medos.

Capa da Edição mais recente do primeiro livro infanto-juvenil
de Graciliano Ramos, a "Terra dos Meninos Pelados"

Em 1937, logo que sai da prisão, Graciliano escreve A terra dos meninos pelados , que recebe neste mesmo ano o prêmio de literatura infantil do MEC. É publicado em 1939, pela Editora Globo. Em 1944 publica Histórias de Alexandre (Editora Leitura), apresentado como literatura infanto-juvenil. Em 1962, a Livraria Martins lança Alexandre e outros heróis , reunindo estas duas obras e mais a inédita História da República , sátira à História do Brasil. Vamos focalizar os dois primeiros livros.

Alexandre e outros heróis é uma coletânea de pequenos contos baseados no folclore nordestino, nas quais o humor é o traço marcante. Nela o autor alagoano faz sua incursão pelos contos folclóricos, que lhe serviram de inspiração, aproximando-se assim da literatura mais popular. Nele o linguajar nordestino predomina. Destaca-se também nessa obra o humor, contrastando com a sisudez, marca de?nidora do estilo de Graciliano em suas obras mais conhecidas. É esse humor, a veia satírica, aliada a uma linguagem leve, embora ainda econômica e enxuta, que dá a esse livro um direcionamento para o público infanto-juvenil.

É em A terra dos meninos pelados , porém, que encontramos um Graciliano desconhecido para muitos de seus leitores, aqueles que se ativeram a suas obras mais conhecidas. É o Graciliano do nonsense , da fantasia onírica, do lirismo simbólico. Aliados a uma linguagem clara, a uma narrativa rigorosamente cronológica, tais elementos dão a essa obra uma leveza e, ao mesmo tempo, uma profundidade temática que a incluem na literatura infantil brasileira de qualidade.

Diríamos mais: Graciliano, assim como Monteiro Lobato, antecipa em algumas décadas o direcionamento estético-ideológico que seria a referência da atual literatura brasileira para crianças e adolescentes: o questionamento dos valoressociais, a proposta crítica.

O livro conta a história de Raimundo, menino calvo, com um olho azul outro preto, e que por isso era maltratado em sua cidade. Autodenominando-se Dr. Raimundo Pelado, ele, porém, cansa de ser alvo constante de chacotas por ser diferente.

Certo dia, mesmo tendo a lição de geografia para estudar, resolver ir procurar Tatipirun, um lugar “que ele tinha adivinhado, mas nunca tinha visto”, onde todos os meninos são calvos e têm um olho azul outro preto. Encontra uma terra onde os mortos aplainam-se e as curvas estiram-se “como uma linha” para ele passar; uma terra que se altera para lhe dar conforto, não há noite, não faz calor nem frio, e as pessoas o tratam como igual. As crianças aceitam e não o veem como um diferente. Embora, como todas as crianças, discutissem e discordassem, em Tatipirun todos tinham voz e direito de serem ouvidos. Depois de vivenciar tais experiências em um mundo de inclusão, Raimundo retorna a sua terra, Camabaracá, pois tinha de estudar sua lição de geografia, mesmo sabendo que lá voltaria a conviver com a intolerância e a discriminação.

Temos aí o papel exercido pela literatura infantil: as crianças fogem do real através da imaginação, mas precisam retornar à realidade, que nem sempre se coaduna com o imaginário por elas experimentado.

O que vemos nessa obra, todavia, é muito mais que um livro infantil questionando os valores sociais. Nela encontramos, de forma simples e acessível, a coerência ideológica de um autor cuja literatura expressa sua indignação com as injustiças, com a sociedade que discrimina, menospreza os direitos e a cidadania.

E outros contos indicados para esse público se encontram na sua obra Insônia (1947), composta por treze narrativas curtas,destacam-se dois contos, “Luciana” e “Minsk” que revelam um narrador carregado de ternura e compreensão pelo humano.Colocados um na sequência do outro, os contos trazem como personagem principal uma criança, uma menininha de tenra idade, que ainda não sabe ler, nem alcança o ferrolho da porta, mas que, segundo o tio Severino, “sabe onde o diabo dorme”. E a palavra de tio Severino tem peso de lei. Luciana gosta de imitar as senhoras que usam sapatos altos. Por isso, prende cordões em uma caixa vazia que transforma em bolsa, com um pedaço de pau simula uma sombrinha, ergue-se nas pontas dos pés, e, assim, “aparelhada”, diz o narrador, “chama-se D. Henriqueta da Boa Vista” e conversa com amigas invisíveis.


O conto penetra o psiquismo infantil, descortinando o mundo imaginário das crianças, com toda sua riqueza e ludicidade. A expressão “sabe onde o diabo dorme”, bem típica do vocabulário nordestino, refere-se à esperteza, à capacidade de invenção, à criatividade, tão próprias do universo infantil, e tão negada pelos adultos. A personagem Luciana contrasta com Maria Júlia, sua irmã, “encolhida e pálida”, segundo o narrador, muito bem comportada, correspondendo ao gosto e às expectativas da família. A protagonista, antecipando a visão do moderno conto de fadas, recusa o comportamento das princesas e não se fixa nas estrelas e “se largaria pelo mundo, importante, os calcanhares erguidos, em companhia de seres enigmáticos que lhe ensinariam a residência do diabo”, diz o narrador e, acrescentamos, que lhe poderiam ensinar a viver.

A chegada de Minsk modifica tudo isso. A personagem esquece as amigas invisíveis, a performance de D. Henriqueta da Boa-Vista, as escapadas, as aventuras na carroça de Seu Adão. Minsk, o amigo concreto, tudo substitui. O exercício do amor e da troca estabelece-se entre a menina e o animalzinho. Ela lhe apresenta o seu pequeno mundo e, ele, de espírito dócil e compreensivo, mas disposto às O outro conto de Insônia , intitulado “Minsk, traz os mesmos personagens: a mãe, o papai, o tio Severino, Maria Júlia, a cozinheira, Seu Adão, o carroceiro contador de histórias, Luciana, naturalmente, e um novo personagem, Minsk, um periquito grande, com manchas amarelas, que andava torto, inchado e fazia. “Eh! Eh!”, presente de tio Severino. O narrador de Graciliano continua investindo na exuberância do imaginário infantil ao narrar que Luciana vive “no mundo da lua, monologando, imaginando casos romanescos, viagens para lá da esquina, com figuras misteriosas que às vezes se uniam, outras vezes se multiplicavam”. aventuras e à liberdade, descortina para a protagonista o afeto e a doçura. A mãe, sempre preocupada em poupá-la dos cortes, arranhões ou ossos quebrados, diminui “as arrelias, censuras, cocorotes e puxões de orelhas”.


O clímax do conto acontece quando, ao exercitar sua habilidade de andar de olhos fechados e de costas, Luciana pisa e esmaga Minsk, involuntariamente. Há uma profunda identificação entre a protagonista e a “trouxa de penas ensanguentadas” em que o pequeno animal se transforma. Parece que era ela mesma que se tinha pisado e morria. Luciana se confronta com a dor abismal da perda do objeto amado. O mundo adulto se preocupa sempre em preparar as crianças para a dor das quedas, das esfoladuras, que somem com pomadas e compressas. No entanto, nada é capaz de nos advertir para o desastre da perda de alguém que amamos, com quem nos identificamos e que é de fundamental importância para nossa vida.

A narrativa graciliânica representa essa dor de forma magistral na repetição do nome do ser amado – Minsk – pela personagem-menina em diferentes entonações que vão do grito dilacerante do inesperado até o sussurro da despedida e do apelo desesperado: “– Não morra, Minsk.” O diálogo entre a protagonista e o periquito agonizante que responde por movimentos débeis se traduz na mais bela representação da perda na contística da literatura brasileira.
Se Pasárgada foi para Bandeira o lugar utópico do prazer realizado, do qual o eu-lirico não fala em voltar, a Tatipirun de Graciliano é a visão da felicidade possível só no imaginário, a qual tem de ser abandonada em nome de uma realidade que precisa ser enfrentada. Mas é também, para o leitor infantil, a percepção de que a realidade pode ser mudada, e um mundo melhor pode existir. Raimundo Pelado é o Patinho Feio que volta a suas origens, diferentemente do de Andersen.
Concluindo, creio que a leitura dessa obra de Graciliano Ramos, pela coerência com a sua literatura adulta, apresenta-se, pois, para o leitor criança, como uma importante iniciação para a leitura posterior desse grande escritor.





LEITURAS COMPLEMENTARES :

1) Escrita para o Público Infantil  - Texto e análise da autora sobre um outro conto voltado para o público infantil , "Kafta e a Boneca Viajante" .

2) Graciliano Ramos : Adulto e Infantil - de Ricardo Ramos Filho
A nossa intenção neste trabalho é situar o escritor Graciliano Ramos em um contexto de estudo onde se coteje a sua produção adulta, mais especificamente o livro São Bernardo, com A terra dos meninos pelados, um de seus trabalhos destinado às crianças. Ao considerarmos as relações dinâmicas que se estabelecem entre autor, texto e leitor, e sabendo que o escritor, ao elaborar o seu trabalho, o faz submetido a uma intenção criativa e a um propósito estético, ideológico e social, cônscio da necessidade de buscar efeitos de sentido, transmitir o seu pensamento e incitar interpretações, tentamos responder a uma questão que nos parece fundamental: podemos considerar os dois ramos literários de Graciliano (o adulto e o infantil) igualmente significativos?


3) A Geografia dos Afetos : A Minsk de Graciliano Ramos - Fernanda Coutinho.

4) Crianças Leitoras na Terra dos Meninos Pelados : A Valorização das Diferenças -  Janaína Martins da Silva.








NOTAS DA AUTORA SOBRE O CONTO LUCIANA

“Esta menina sabe onde o diabo dorme”. A frase, que Luciana ouve o tio dizer sobre ela, deixa a menina assustada, mas também cheia de si. E ainda um pouco confusa: porque a verdade é que Luciana não tem muitas informações sobre o diabo, menos ainda de onde a criatura fixa residência.
Nesta história – inicialmente um conto publicado em 1947 no livro “Insônia” – Graciliano narra com lirismo os conflitos da inquieta Luciana que, ao mesmo tempo em que cria uma personagem para sentir-se mais moça, ainda não entende muito bem o mundo dos adultos.
“Luciana” é o segundo lançamento de um projeto criado pela Galerinha para apresentar a obra de Graciliano, um dos mais importantes autores da literatura brasileira, ao público infantil. A série começou com “Minsk”, publicado em 2013. Ambos ganharam as ilustrações da pernambucana Rosinha, vencedora de vários prêmios da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e do Prêmio Jabuti.
TRECHO
“Luciana avizinhou-se do sofá nas pontas dos pés, imitando as senhoras que usam sapatos de tacão alto. Gostava desse exercício, convidava a irmã para brincar de moça. Encolhida e pálida, Maria Júlia cambaleava – e Luciana se arranjava só; prendia cordões numa caixa vazia, que se transformava em bolsa, com um pedaço de pau armava-se de sombrinha e lá ia remedando um pássaro que se dispõe a voar, inclinada para a frente, os calcanhares apoiados em saltos enormes e imaginários. Assim aparelhada, chamava-se d. Henriqueta da Boa-Vista.”

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