A ÚLTIMA ENTREVISTA DE GRACILIANO RAMOS
Principio por pedir a Graciliano Ramos que me diga alguma coisa sobre os
começos de sua vida, no interior de Alagoas, na cidade de Quebrangulo (não
Quebrângulo, como geralmente se diz), onde nasceu. “Mas isso tudo está contado
em ‘Infância’. Valeria a pena repetir?” E como eu dissesse que sim, resumiu:
“De minha cidade natal não guardo a menor lembrança, pois saí de lá com um ano.
Criei-me em Buíque, zona de indústria pastoril, no interior de Pernambuco, para
onde, a conselho de minha avó, meu pai se transferiu com a família. Em Buíque
morei alguns anos e muitos fatos desse tempo estão contados no meu livro de
memórias”.
Abro o volume, para conferir, e, entre outras coisas, lá encontro este
perfil psicológico do velho Ramos, traçado pelo filho: “Tinha imaginação fraca
e era bastante incrédulo. Aborrecia os ateus, mas só acreditava nas contas
correntes e nas faturas. Desconfiava dos livros, que papel aguenta muita
lorota, e negou obstinadamente os aeroplanos. Em 1934 considerava-os
duvidosos”.
De quem o romancista teria herdado, então, o gosto pela literatura?
Talvez do avô paterno, cujo retrato desbotado costumava admirar no álbum que se
guardava no baú, e de quem admite que tenha recebido em legado “a vocação
absurda para as coisas inúteis”. De sua mãe, o espírito infantil recolheu esta
impressão: “Uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se,
várias bossas na cabeça mal protegida por um cabelinho ralo, boca má, olhos
maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura”, ente
difícil que na harmonia conjugal “se amaciava, arredondava as arestas,
afrouxava os dedos que batiam no cocuruto, dobrados, e tinham a dureza de
martelos”.
De Buíque, onde o romancista frequentou a primeira escola, experimentou
os primeiros desânimos diante dos livros didáticos do Barão de Macaúbas e viveu
algumas das inesquecíveis aventuras de sua meninice, a família mudou-se para
Viçosa, não a de Minas, terra do presidente Bernardes, mas a açucareira do
interior de Alagoas. O que foi a extensa caminhada, de dezenas de léguas, desde
os campos ralos, povoados de xiquexiques e mandacarus, até uma nova paisagem,
de vegetação densa e muito verde, longa viagem feita em lombo de animal, está
contada numa das melhores páginas de “Infância”.
De Viçosa, Graciliano passou a Maceió, onde frequentou um colégio mau;
voltou e, aos 18 anos, foi morar em Palmeira dos Índios, no interior do Estado.
Em Palmeira dos Índios chegaria a prefeito, e foi graças a dois relatórios que
escreveu que se tornou conhecido. Mas não precipitemos os acontecimentos.
Estamos ainda em 1914. Nesse ano realiza Graciliano sua primeira viagem
ao Rio, tendo trabalhado como foca de revisão. No “Correio da Manhã” e no “O
Século”, de Brício Filho, não passou de suplente de revisor, trabalhando apenas
quando o revisor efetivo faltava. Em “A Tarde”, porém, um jornal surgido
naquela época para defender Pinheiro Machado, chegou a revisor efetivo. Morou
em várias pensões, naquele Rio dos princípios do século, que tantos cronistas
já têm descrito. Os antigos endereços ficaram-lhe na memória, e sem qualquer
esforço o romancista os vai citando: Largo da Lapa 110; Maranguape 11,
Riachuelo 19. Todos numa zona então muito pouco recomendável, porque bairros de
meretrício, de desordeiros e boêmios.
Nessa sua primeira viagem à Corte
procurou aproximar-se de algum escritor, fez camaradagem literária?
Graciliano Ramos — Nenhuma. Os
escritores daquele tempo eram cidadãos que, nas livrarias e nos cafés,
discutiam colocação de pronomes e discorriam sobre Taine. Machado e Euclides já
haviam morrido, e os anos de 1914 e 1915, em que estive no Rio, assinalam, na
literatura brasileira, uma época cinzenta e anódina, de que é bem
representativo um tipo como Osório Duque Estrada, que então pontificava.
Ficou aqui até quando?
Graciliano Ramos — Até 1915.
Depois de curta e nada sedutora permanência na capital, achei melhor voltar
para Palmeira dos Índios, onde já havia deixado um caso sentimental e onde
minha família estava toda sendo dizimada pela peste bubônica. Num só dia perdi
dois irmãos. Alarmado, e também desgostoso com a vida que levava, tratei de
voltar para Alagoas. Em outubro de 1915 casei-me e estabeleci-me com loja de
fazendas em Palmeira dos Índios. A mesma loja que fora de meu pai.
Nessa ocasião já tinha preocupações
literárias?
Graciliano Ramos — Lia muito e
escrevia coisas que inutilizava ou publicava com pseudônimos.
Quer revelar alguns desses pseudônimos?
Graciliano Ramos — Você é besta.
Fazia versos?
Graciliano Ramos — Aprendi isso,
para chegar à prosa, que sempre achei muito difícil. Tendo vivido quinze anos
completamente isolado sem visitar ninguém, pois nem as visitas recebidas por
ocasião da morte de minha mulher eu paguei, tive tempo bastante para leituras.
Depois da Revolução Russa, passei a assinar vários jornais do Rio. Desse modo
me mantinha mais ou menos informado, e os livros, pedidos pelos catálogos,
iam-me do Alves e do Garnier, e principalmente de Paris, por intermédio do
Mercure de France.
Então, se procurava manter-se tão bem
informado a respeito do que se passava no Rio e no resto do mundo, deve ter
acompanhado, lá de Palmeira dos Índios, o movimento modernista?
Graciliano Ramos — Claro que
acompanhei. Já não lhe disse que assinava jornais?
E que impressão lhe ficou do
modernismo?
Graciliano Ramos — Muito ruim.
Sempre achei aquilo uma tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os
modernistas brasileiros eram uns cabotinos. Enquanto outros procuravam estudar
alguma coisa, ver, sentir, eles importavam Marinetti.
Não exclui ninguém dessa condenação?
Graciliano Ramos — Já disse: salvo
raríssimas exceções. Está visto que excluo Bandeira, por exemplo, que aliás não
é propriamente modernista. Fez sonetos, foi parnasiano. E o “Solau do Desamado”
é como as “Sextilhas de Frei Antão”. Por dever de ofício, pois estou
organizando uma antologia de contos brasileiros, antologia que rola há mais de
três anos, tive de reler toda a obra de um dos próceres do modernismo. Achei
dois contos de cinco ou seis páginas cada um. E pergunto: isso justifica uma
glória literária?
(Franze a testa, detém-se um instante,
mas logo prossegue.)
Graciliano Ramos — Os modernistas
brasileiros, confundindo o ambiente literário do país com a Academia, traçaram
linhas divisórias rígidas (mas arbitrárias) entre o bom e o mau. E querendo
destruir tudo que ficara para trás, condenaram, por ignorância ou safadeza,
muita coisa que merecia ser salva. Vendo em Coelho Neto a encarnação da
literatura brasileira — o que era um erro — fingiram esquecer tudo quanto havia
antes, e nessa condenação maciça cometeram injustiças tremendas. Nas leituras
que tenho feito, para a organização da antologia a que me referi, encontrei
vários contos, de autores propositadamente esquecidos pelos modernistas e que
seriam grandes em qualquer literatura. Lembro-me de alguns: “O Ratinho
Tique-Taque”, de Medeiros e Albuquerque; “Tílburi de Praça”, de Raul Pompéia;
“Só”, de Domício da Gama; “Coração de Velho”, de Mário de Alencar; “Os Brincos
de Sara”, de Alberto de Oliveira. Nas antologias que andam por aí essas
produções geralmente não aparecem, e de alguns dos autores citados são
transcritos contos que não dão a ideia exata do seu talento e do domínio que
tinham do gênero. Só posso atribuir isso, como já disse, à desonestidade.
Porque se os compararmos aos produtos dos líderes modernistas, estes se achatam
completamente.
Quer dizer que não se considera modernista?
Graciliano Ramos — Que ideia!
Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira
dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão.
E como foi que chegou a prefeito da
cidade?
Graciliano Ramos — Assassinaram o
meu antecessor. Escolheram-me por acaso. Fui eleito, naquele velho sistema das
atas falsas, os defuntos votando (o sistema no Brasil anterior a 1930), e
fiquei vinte e sete meses na prefeitura.
Consta que, como prefeito, soltava os
presos para que fossem abrir estradas…
Graciliano Ramos — Não era bem
isso. Prendia os vagabundos, obrigava-os a trabalhar. E consegui fazer, no
município de Palmeira dos Índios, um pedaço de estrada e uma terraplenagem
difícil.
Em que ano foi isso?
Graciliano Ramos — Em 1930.
O ano do relatório…
Graciliano Ramos — Os relatórios
são dois: há o de 1929 e o de 30.
Relatórios do prefeito ao governador do
Estado, dando contas de sua administração, não é?
Graciliano Ramos — Justo. Apenas,
como a linguagem não era a habitualmente usada em trabalhos dessa natureza, e
porque neles eu dava às coisas seus verdadeiros nomes, causaram um escarcéu
medonho. O primeiro teve repercussão que me surpreendeu. Foi comentado no
Brasil inteiro. Houve jornais que o transcreveram integralmente.
E assim nasceu o escritor…
Graciliano Ramos — Não. Nasceu
antes. Mas tinha o bom senso de queimar os romances que escrevia. Queimaram-se
diversos. “Caetés”, infelizmente, escapou e veio à publicidade.
Numa edição Schmidt…
Graciliano Ramos — Exato. Por
intermédio de Rômulo de Castro, Schmidt, que aqui no Rio lera os meus
relatórios, pediu-me que lhe enviasse artigos para a imprensa. Como não me
interessasse fazer carreira no jornalismo, nem construir nome literário,
recusei-me. Aliás, nessa ocasião já estava de mudança para Maceió, pois fora
nomeado diretor da Imprensa Oficial. Com a revolução, quis demitir-me, mas não
pude. E lá fiquei até dezembro de 1931. Não suportando os interventores
militares que por lá andaram, larguei o cargo e voltei para Palmeira dos
Índios, onde, numa sacristia, fiz “São Bernardo”. Estava no capítulo 19,
capítulo que escrevi já com febre, quando adoeci gravemente com uma psoíte e
tive de ir para o hospital. Do hospital ficaram-me impressões que tentei fixar
em dois contos: “Paulo” e “O Relógio do Hospital” — e no último capítulo de
“Angústia”. No delírio, julgava-me dois, ou um corpo com duas partes: uma boa,
outra ruim. E queria que salvassem a primeira e mandassem a segunda para o
necrotério. Estava convalescendo, em janeiro de 1933, quando tive notícia da
minha nomeação para diretor da Instrução Pública. Não acreditei.
Qual o interventor que o nomeou?
Graciliano Ramos — O capitão
Afonso de Carvalho, hoje coronel. Foi disparate. Permaneci no cargo até 3 de
março de 1936. Em 1933 Schmidt lançara “Caetés”, que eu trazia na gaveta desde
muito tempo. Naquele dia do mês de março de 1936, porém, sem qualquer
explicação, fui preso e remetido para o Recife. onde passei dez dias incomunicável.
Depois fui metido no porão do “Manaus” e vim para cá. Tive dez ou doze
transferências de cadeia.
Qual o motivo da prisão?
Graciliano Ramos — Sei lá! Talvez
ligações com a Aliança Nacional Libertadora, ligações que, no entanto, não
existiam. De qualquer maneira, acho desnecessário rememorar estas coisas,
porque tudo aparecerá nas “Memórias da Prisão”, que estou compondo.
Foi assim, então, que veio para o Rio?
Graciliano Ramos — Foi. Arrastado,
preso.
Mas valeu a pena, não?
Graciliano Ramos — Sinceramente,
não sei. Nunca tive planos na vida, muito menos planos de sucesso. Depois
daquela experiência da mocidade, o Rio não me atraía. No entanto vim, no porão
do Manaus, e aqui vivo.
(Estávamos, portanto, diante de um
antipará. Os “parás”, na saborosa classificação de Jaime Ovale, são “esses
homenzinhos terríveis que vêm do Norte para vencer na capital da República; são
habilíssimos, audaciosos, dinâmicos e visam primeiro que tudo o sucesso
material, ou a glória literária, ou o domínio político”. Que pensaria
Graciliano dessa fauna? Lanço a pergunta e a resposta não tarda.)
Graciliano Ramos — Está claro que
existe um “exército do Pará”. Na maioria dos casos, porém, os seus milicianos
já chegam feitos do Norte. Aqui vêm apenas colher os louros, ou, mais positivamente,
as vantagens. E no Rio em geral definham, tornam-se mofinos. Ignoro se também
sou “Pará”. Nunca fiz coisa que prestasse, mas ainda assim o pouco que fiz foi
lá e não aqui, onde a vida não nos deixa tempo para nada. Hoje leio apenas
jornais, um ou outro romance. De manhã escrevo; à tarde saio para as minhas
ocupações (inclusive para o “papo” na livraria); à noite trabalho. Onde iria
achar tempo para leituras? E se não tivesse lido um pouco no interior, onde os
dias são intermináveis, seria inteiramente analfabeto.
Quer dizer que acha preferível, para o
escritor, a vida na província?
Graciliano Ramos — No Nordeste não
podemos falar em “provincianismo”, luxo dos Estados grandes: São Paulo, Minas,
Rio Grande do Sul. Nós, do Nordeste, temos de ser “municipais” ou “nacionais”.
E, a ter de morar em qualquer dos Estados daquela região, acho preferível o
interior às capitais, porque estas, seus mexericos, seus grupinhos literários,
suas academiazinhas, seus institutos históricos, são sempre muito ruins. Já no
interior poderá um homem entrar em contato íntimo com a terra e o povo. É, por
exemplo, de onde vem a força de um José Lins do Rego, de uma Raquel de Queirós,
de um Jorge Amado.
Sabe que é apontado como um dos nossos
escritores modernos que melhor manejam o idioma?
Graciliano Ramos — Conversa.
Talvez, se houvesse alguma verdade nisso, eu devesse muito aos caboclos do
Nordeste, que falam bem. É lá que a língua se conserva mais pura. Num caso de
sintaxe de regência, por exemplo, entre a linguagem de um doutor e a do caboclo
— não tenha dúvida, vá pelo caboclo, e não erra. Note que me refiro ao caboclo
do sertão. O do litoral vai-se estrangeirando.
Mas não me venha dizer que seu
aprendizado da língua se fez apenas com os caboclos de Buíque e Palmeira dos
Índios.
Graciliano Ramos — Claro que não.
Muitas coisas não poderiam eles ensinar-me. Está visto que tive de chatear-me
lendo gramáticas. E arrepiei-me com a leitura dos frades.
Consta que você, como Euclides da Cunha
e Monteiro Lobato, é grande leitor de dicionários.
Graciliano Ramos — Consta e é
verdade. Dicionário, para mim, nunca foi apenas obra de consulta. Costumo ler
e estudar dicionários. Como escritor, sou obrigado a jogar com palavras. Logo,
preciso conhecer o seu valor exato.
Acha isso uma qualidade?
Graciliano Ramos — Não sei. O que
sei é que não há talento que resista à ignorância da língua.
Poderia, hoje, deixar de escrever?
Graciliano Ramos — Quem me dera
poder deixar.
Sua obra de ficção é autobiográfica?
Graciliano Ramos — Não se lembra
do que lhe disse a respeito do delírio no hospital? Nunca pude sair de mim
mesmo. Só posso escrever o que sou. E se os personagens se comportarem de modos
diferente, é porque não sou um só. Em determinadas condições, procederia como
esta ou aquela das minhas personagens.
Já se pode viver, no Brasil, da
profissão de escritor?
Graciliano Ramos — Não creio. A
última edição de minhas obras rendeu-me 50 contos. Da edição americana de
“Angústia”, recebi 10 contos apenas. Tenho também três livros traduzidos para o
espanhol. Mas os negócios na Argentina e no Uruguai andaram mal. Como não tenho
o hábito de frequentar os suplementos e as revistas ilustradas, a literatura me
rende pouco.
Que outras atividades exerce?
Graciliano Ramos — Trabalho no
“Correio da Manhã” e sou inspetor de ensino secundário no ginásio São Bento.
Gosta do emprego que tem?
Graciliano Ramos — É-me
indiferente. Trata-se de uma sinecura como outra qualquer. Em todo caso, nunca
tive uma falta nem tirei licença.
E no “Correio da Manhã”, qual o seu
serviço?
Graciliano Ramos — Corrijo a
gramática dos repórteres e noticiaristas.
Gosta de jornalismo?
Graciliano Ramos — Não. Nem me
considero jornalista.
Com essa vida de jornal, naturalmente
dorme tarde.
Graciliano Ramos — À uma hora. E
me levanto às sete.
Nos seus livros trabalha, portanto,
apenas de manhã.
Graciliano Ramos — Exato. Até às
onze, mais ou menos.
E para trabalhar, exige um bom ambiente
ou não liga a isso?
Graciliano Ramos — Trabalho em
qualquer parte. “Angústia” foi escrito em palácio, quando eu era diretor da
Instrução Pública de Alagoas. “São Bernardo”, em péssimas condições, numa
igreja. Qualquer canto me serve. Mas disponho, hoje, em casa, de uma
confortável sala de trabalho: isso que os burgueses costumam chamar “escritório”.
Gosta da casa onde mora?
Graciliano Ramos — Em qualquer
lugar estou bem. Dei-me bem na cadeia. Tenho até saudades da Colônia
Correcional. Deixei lá bons amigos.
(Casado duas vezes, Graciliano tem seis
filhos e duas netas. Pergunto-lhe se costuma ajudar a mulher em casa, e ele se
espanta.)
Graciliano Ramos — Já faço muito
em pagar as despesas. Aliás, tenho horror a compras. E quando ouço o telefone,
tranco-me.
Aos domingos, o que costuma fazer?
Graciliano Ramos — Em geral
escrevo pela manhã e à tarde durmo.
(O autor de “Vidas Secas” não faz
visitas, não vai a concertos nem a conferências e não gosta de música. Tem,
entretanto, um velho hábito: vai diariamente à Livraria José Olympio, na Rua do
Ouvidor, e fica lá várias horas, num banco que já é quase propriedade sua,
localizado no fundo da loja.)
Graciliano Ramos — Muitas vezes
vou lá dormir. Mas aparecem amigos, conhecidos, e toca-se a conversar.
(Em virtude desse hábito, muita gente
pensa que Graciliano dá a vida por um “papo”. Ele, porém, desfaz-me essa
impressão.)
Graciliano Ramos — Quase sempre
converso forçado, porque chegam pessoas. Mas na verdade muitos dias preferiria
ficar quieto, sem trocar palavra. Também é fato que lá aparecem bons amigos,
desses que a gente revê com prazer.
(Como Manuel Bandeira, Graciliano
recebe inúmeros originais, para ler e dar opinião. A Bandeira dirigem-se
sobretudo os jovens poetas ainda incertos quanto à própria vocação. E os que se
iniciam na prosa, geralmente procuram mestre Graciliano. Este, assim, tem
sempre uma quantidade enorme de originais para ler.)
Graciliano Ramos — É maçada.
Recebo dezenas de originais. São principiantes, geralmente dos Estados, que
desejam, é claro, alguns elogios. Já me aconteceu receber, na mesma semana,
originais do Piauí e de Goiás. Eu devia fazer como José Lins: afirmar, sem
leitura, que tudo é magnífico.
(Os escritores jovens do Brasil, que
dos mais distantes Estados remetem originais para Graciliano Ramos, em busca de
uma opinião, e nem sempre recebem resposta, ou a resposta que esperavam, podem,
entretanto, considerar-se vingados: na própria casa do romancista surgem
originais, e originais que ele tem, forçosamente, de ler, e talvez percorra com
olhos mais benignos: os contos de seu filho Ricardo, de 19 anos, e de sua filha
Clara, quatro anos mais moça que o irmão. Ambos têm vocação para as letras.
Ricardo, jornalista, já tem publicado alguma coisa, naturalmente com a chancela
paterna. E, ainda que Graciliano nos afirme o contrário, nos diga que nenhum
deles lhe pede opinião, é divertido imaginar o romancista, cansado de emendar o
português dos noticiaristas do “Correio da Manhã”, e de ler originais que lhe
chegam, às dezenas, de todo o país, ter, em casa, de dar opinião sobre os
trabalhos dos filhos.)
(Pergunto qual a sua impressão dos
contos de Ricardo Ramos, e ele não se nega a opinar.)
Graciliano Ramos — Regulares. Tem
jeito e poderá fazer coisa que preste.
E Clara?
Graciliano Ramos — É ainda
criança. Tem 15 anos apenas e está concluindo o curso secundário.
(Despedindo-me de Graciliano, depois da
longa conversa que aqui tentei reproduzir, faço-lhe uma última pergunta:
Acredita na permanência de sua obra? E sem qualquer pose, sem nada que deixasse
transparecer falsa modéstia, antes dando a impressão de que falava com absoluta
sinceridade, esse pessimista seco e amargo respondeu-me.)
Graciliano Ramos — Não vale nada;
a rigor, até, já desapareceu.
Entrevista publicada na Revista do Globo, edição nº 473, em 18 de dezembro de
1956. E posteriormente no livro República das Letras, de Homero Senna, editora Civilização
Brasileira.