Análises e Artigos da Profª Vera Dias
“Macbeth
Sou Eu !” :Refletindo a imagem de Paulo Honório de
São Bernardo de Graciliano Ramos no espelho de William Shakespeare
São Bernardo de Graciliano Ramos no espelho de William Shakespeare
Profª Vera Dias
É curioso como podemos suspeitar que
Graciliano Ramos possa ter se inspirado no personagem Macbeth de Shakespeare ao
criar o outro personagem, o Paulo Honório, do seu romance São Bernardo. Ao
lerem com atenção a obra do velho bardo, encontraremos muitas características
em comum de dois personagens presentes ali com o de Graciliano. Na primeira
metade do livro, até adquirir a fazenda São Bernardo, ele lembra Macbeth,
disposto a tudo para atingir seus objetivos, sem medir consequências. Na
segunda metade, casa-se com uma jovem professora e, como Otelo, torna-se
extremamente ciumento, contribuindo assim para o desfecho trágico do romance.
Esse artigo visa comparar, com base nos trechos dessas duas obras, corroborar a
hipótese de Graciliano ter se inspirado em Shakespeare para compor seu
personagem principal.
O primeiro capítulo do livro é
extremamente original e envolvente. O narrador, começa contando as dificuldades
que teve para convencer alguns amigos a escreverem um livro junto com ele. Seu
caráter é revelado logo no segundo parágrafo, quando ele conta que traçaria o
plano geral do livro, introduziria na história rudimentos de agricultura e
pecuária, arcaria com as despesas e poria o seu nome na capa. Já se percebe que
é um homem familiarizado com o campo, que dispõe de recursos e tem um
temperamento um tanto dominador. Enquanto o autor narra as divergências
surgidas entre ele e seus amigos, o leitor vai aos poucos se familiarizando com
os personagens do livro. São eles o padre Silvestre, que ficaria com as
citações latinas, o João Nogueira, que corrigiria a ortografia e a sintaxe, Arquimedes,
que faria a parte tipográfica, e Lúcio Gondim, para a composição literária. No
fim do capítulo, resignadamente, o narrador lamenta um mês de trabalho perdido
e decide abandonar o projeto da parceria com os amigos e resolve continuar
sozinho. Neste mesmo parágrafo, um comentário do narrador lembra as corujas de
mau agouro de Macbeth: “Na torre da igreja uma coruja piou. Estremeci, pensei
em Madalena”. O primeiro capítulo se encerra sem que se saiba quem é ele e
muito menos esta misteriosa Madalena, citada pela primeira vez no livro.
Só no terceiro capítulo sabe-se que
Paulo Honório, o narrador, teve uma infância pobre e sofrida, sem pai nem mãe,
e que até os dezoito anos gastou muita enxada, ganhando cinco tostões por dia.
Fez de tudo na vida. Juntou dinheiro e acabou comprando a propriedade, já
arruinada, do filho do antigo proprietário, de quem se fizera amigo e
emprestava dinheiro a juros, para financiar-lhe as farras e bebedeiras. Sem
remorsos, à semelhança de Macbeth.
O novo proprietário plantou mamona e
algodão e recuperou a fazenda, levantando-se às quatro da manhã e trabalhando
duro todos os dias. Invadiu terras, ganhou questões graças ao advogado João
Nogueira e, finalmente, enriqueceu. Montou uma escola na fazenda, para
conquistar a benevolência do governador, e contratou o Padilha, o antigo
proprietário, para administrar a escola.
Não se arrependia de nada. O que está
feito, está feito, dizia, à semelhança da senhora Macbeth. Finalmente,
enamorou-se de Madalena, uma jovem professora contratada por ele para a escola
da fazenda. Ela e a tia que a criara, D. Glória, foram morar em São Bernardo.
São muitas as semelhanças entre Paulo
Honório e Otelo. Ambos têm lembranças de uma infância sofrida e de muito
trabalho: Otelo desde os sete anos frequenta o “campo coberto de tendas” e Paulo Honório lembra-se “de um cego que me puxava as
orelhas”, para o qual trabalhou como guia, e conta que foi “vendedor de doce e
trabalhador alugado”. São homens rudes: Paulo Honório não tem o costume de
escrever e confessa que “esta pena é um objeto pesado” e Otelo admite que é
“pouco agraciado com o doce linguajar da paz”.
Ambos são homens maduros: Paulo
Honório conta que “completei cinqüenta anos pelo São Pedro” e Otelo admite que
“já entrei no vale dos anos”. Casaram-se com mulheres muito mais jovens do que
eles: Madalena tinha 27 anos mas, delicadamente, Paulo Honório disse-lhe que
“ninguém lhe dá mais de vinte” e Desdêmona, segundo seu pai, era uma donzela de
“delicada juventude” .
No entanto, o que mais os caracteriza
são seus casamentos profundamente desiguais, com esposas jovens e prendadas.
Paulo Honório admirava a capacidade da mulher. Ele decide escrever o livro
sozinho e lamenta: “Se eu possuísse metade da instrução de Madalena, encoivarava
isso brincando”. Coincidentemente, Madalena bordava e Otelo elogiava Desdêmona
por ser: “tão hábil com sua agulha”.
O ciúme exagerado foi a causa da
perdição de ambos. É curioso que a obstinação de Otelo em busca de uma prova da
infidelidade de Desdêmona encontra um paralelo em Paulo Honório: “O que me
faltava era uma prova: entrar no quarto de supetão e vê-la na cama com outro”.
O lenço que Desdêmona deixa cair
inadvertidamente toma a forma de uma misteriosa carta escrita por Madalena em
São Bernardo. O marido surpreende-a escrevendo e, obstinadamente, ela não deixa
Paulo a leia e considera sua insistência como uma invasão indevida à sua
privacidade. Depois de uma áspera discussão, “Madalena rasgou o papel em
pedacinhos e atirou-os pela janela”.
Paulo Honório, que subiu na vida não
só com muito trabalho, mas também com artifícios escusos, desconfia de tudo e
de todos. À semelhança do Anselmo de Dom Quixote, ele se torna o Iago de si
mesmo. Querendo testar o inocente Padilha, Paulo pergunta-lhe sobre o que ele
conversa com Madalena. O administrado da escola é todo elogios: “Literatura,
política, artes, religião… Uma senhora inteligente, a D. Madalena. E instruída,
é uma biblioteca. Afinal eu estou chovendo no molhado. O senhor, melhor do que
eu, conhece a mulher que possui”.
A última frase acima deixa Paulo
Honório extremamente inquieto. Será que o Padilha sabe de alguma coisa? Como
diz Iago, “Ninharias leves como o ar/ são para o ciumento confirmações fortes/
como provas da Sagrada Escritura”. Nem mesmo D. Glória, a tia de Madalena,
escapa das suspeitas do ciumento marido: “Passadas mansinhas, olhos baixos, voz
sumida ― estava mesmo a preceito para alcoviteira”.
O episódio da carta ressurge algumas
páginas adiante, quando Paulo Honório descobre, no chão, uma folha, talvez
trazida pelo vento. Ele reconhece “a bonita letra redonda de Margarida”, mas
não entende o texto. Algumas palavras são desconhecidas, outras “conhecidas de
vista”, mas dispostas de uma forma que lhe dificultava a compreensão. Para o
ciumento marido, “aquilo era trecho de carta, e de carta a homem”.
Concluindo meu artigo, o romance tem
um desfecho surpreendente e original, bem diferente do de “Otelo”. E não se
dissipa a sensação de que exista mesmo a possibilidade de Graciliano ter se
inspirado em Shakespeare para a composição de Paulo Honório. Há coincidências
demais, por tudo que já analisamos e comparamos aqui. Na verdade, isso vem
comprovar que um grande autor nunca se faz sozinho. Sempre existem as vozes de
outros que o precederam, de leituras que ele realizou antes de escrever sua
narrativa. E isso, definitivamente,constitui um axioma fundamental para o desenvolvimento de um bom escritor na confecção de suas obras.
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