ANGÚSTIA DE GRACILIANO RAMOS
“Angústia”
– Graciliano Ramos
Resenha Livro 202 – “Angústia” –
Graciliano Ramos – Ed. Record
O escritor alagoano Graciliano Ramos é
provavelmente o principal expoente da assim chamada segunda fase do modernismo
literário no Brasil. Pode-se constatar uma solução de continuidade entre a
primeira e a segunda geração de escritores do modernismo no que se refere à
relação da temática nacional. Desde a Semana de 22 ou mesmo fora do âmbito das
artes com a produção intelectual de autores como Caio Prado Jr., Sérgio Buarque
de Holanda e Gyberto Freire, observa-se nas primeiras décadas do século vinte
no Brasil todo um movimento intelectual no sentido de buscar retratar as
especificidades do país, as chaves explicativas brasileiras desde nossos ranços
coloniais, bem como criar uma nova arte autenticamente nacional. Este último
ponto era denominador comum dos modernistas de 1922, que reuniam artistas que
saíram em campo em busca de formas de comunicação oral, do folclore e da
cultura popular e daí nasceram personagens como Macunaíma ou peças retratando o
mundo do trabalho como as de Tarsila do Amaral.
O escritores da 2ª fase do Modernismo
deram uma continuidade a este movimento de descoberta da nação, desta vez a
partir do regionalismo e da crítica social. Dentre os livros de Graciliano
Ramos, aquele que talvez mais estaria próximo das demais obras produzidas por
escritores como Rachel de Queirós, Amando Fontes e José Lins do Rego,
certamente seria “Vidas Secas”. Temos aqui os dois aspectos mais marcantes
daquela geração de escritores: um retrato com lances líricos e retratos
paisagísticos objetivos do sertão nordestino, uma família de retirantes
expulsos da terra, lutando pela vida, diversas passagens que remontam à crítica
aos poderes constituídos, incluídos o estado, desde quando Fabiano se insurge
contra o soldado amarelo, é escorraçado e preso. E um processo que se perdura
ao longo da narrativa de degradação da família ao longo de sua jornada, a
redução de diálogos e frases a meras interjeições e a conformação do homem a
animal, enquanto a cadela baleia parece sinalizar fenômeno inverso, o último
reduto de humanidade naquela triste história de retirantes oprimidos pela
natureza e pela sociedade.
Angústia por outro lado é um romance
cujo centro dá-se na cidade, mais especificamente na zona suburbana de Maceió,
onde Luís da Silva, solteiro, um escrevinhador de jornal e burocrata,
personagem narrador principal cria as bases de uma história de corte
psicológico até então não observada nos demais romances de Graciliano Ramos:
Caetés, São Bernardo e Vidas Secas. O romance é contado em primeira pessoa,
consoante os fluxos de pensamento do autor que frequentemente embaralha suas
percepções com o seu passado. Trata-se de uma história de um homem e de um
mundo decadentes produto de um período histórico de transição em que todo um
mundo rural de coronéis, donos de engenhos e cangaceiros igualmente cairiam por
terra com o desenvolvimento gradual da cidade e da modernidade.
Luís da Silva tem 35 anos e nasceu e
viveu recluso na fazenda de propriedade de seu avô, Trajano Pereira de Aquino
Cavalcante e Silva. Em tempos pretéritos, seu Trajano fora um típico coronel,
dono não só de terra, mas com poder jurisdicional sobre o reduto, com poder de
polícia junto aos seus homens (jagunços), cuidando das questões envolvendo
terras, direito de família e castigando rapazes que defloravam moças. Em 1888
veio a abolição e os negros abandonaram a fazenda, exceto mestre Domingo que,
já com a velhice do coronel, ia recolhe-lo na bodega, bêbedo de aguardente
“- Negro, tu não respeitas teu senhor
não, negro”!
Diante das recordações da infância de
Luís da Silva, o Avô já se encontrava debilitado pela velhice, pelo álcool e
pela senilidade. E o pai de Luís, ao invés de dar trabalho junto à fazenda,
passava o dia deitado na rede lendo livros. O resultado era que, na recordação
de Luís da Silva, aquele mundo da Fazenda que num passado remoto certamente
reunia os atributos de riqueza e poder estavam em plena decadência, com os
cupins comendo lentamente o imóvel, e durante as chuvas, todas as salas
se enchendo de poças de água.
Por todo romance observa-se que Luís da
Silva sente-se como alguém deslocado. Em alguns momentos sente-se como um rato.
Na rua anda olhando para baixo e isso faz com que a camisa dobre para cima,
além de provocar trombadas junto aos demais transeuntes: nestes momentos,
sempre pede perdão. Na fazenda do velho Trajano, quando criança, Luís sempre
brincou só, até seu pai leva-lo até a escola aos 14 anos de idade “para ensinar
este asno” as primeiras letras. O que ocorre é uma falta de pertencimento tanto
ao mundo da intelectualidade pequeno burguesa que frequentará os cafés e
eventos da cidades e ao mesmo tempo uma falta de identidade com os tipos
populares diante da fala rebuscada de Luís, adquirida com o seu trabalho
eminentemente intelectual nos jornais e na repartição pública. Em certa medida,
Luís é uma expressão de um processo de modernização contraditória que se por um
lado traz a lume a cidade, os bondes, as fábricas, os operários e os pequenos
burgueses, ainda mantêm o patrimonialismo, a política oligárquica e a brutal
segregação social.
“Os bordões do violão gemiam, as
gargalhadas sonoras da mulher pintada enchiam a praça. A história que o homem
acaboclado, de peito cabeludo e cicatrizes no rosto, contava ao engraxate devia
ser interessante. Gestos expressivos, provavelmente façanhas de capueiras. Eu
não compreendia a linguagem do narrador, as particularidades que provocavam
admiração perdiam-se. As gargalhadas da mulher transformavam-se naquela viagem
curta aos meus ouvidos, chegavam-me frias, geladas. E a marcha do carnaval
entristecia nos bordões do pinho. Todas aquelas pessoas entendiam-se
perfeitamente”.
A história de Luís da Silva envolve uma
série de episódios que vão revelando a personalidade atormentada. Vamos tendo
conhecimento de que Luís pode ficar dias sem tomar banho mas tem uma mania
doentia de lavar as mãos. Tem um amigo judeu que vive de emprestar dinheiro e é
comunista, mas morre de medo de falar do assunto em frente às autoridades. E no
que se refere ao amor e às mulheres, valeria tecer alguns comentários à
parte.
Certa feita, fumando e lendo em seu
quintal, Luís da Silva observa uma nova vizinha e aos poucos vai conversando
com ela. Com o tempo, Luís e Marina travam relações. Marina é uma garota jovem,
talvez matreira, mas desperta fortes sentimentos de desejo sexual em Luís. Com
o tempo, Luís consegue obter a mão dela em casamento junto aos pais. Faz todo
esforço para comprar panos para o enxoval. Dá todo o dinheiro, faz dívidas, e a
menina faz pouco caso do pobre escriba, como se esperasse alguém com melhores
condições pecuniárias para fazer seu pé de meia. E ele veio, Julião Tavares,
filho de um comerciante rico, que simplesmente apareceu como um conhecido de
Luís, fez a corte e tomou Marina do protagonista. Não é nossa intenção contar muitos
detalhes do livro: desta forma, aqueles que não leram “Angústia” podem se
desinteressar pela leitura. Apenas pontuamos aqui esta passagem para sinalizar
que as frustrações do narrador/Luís ganham espaço decisivo quanto às mulheres.
Por outro lado não parece haver em qualquer passagem sentimentos amorosos em
Luís - eventualmente, sua incapacidade de amar começa pela ausência de amor
próprio. O que se constata é ciúmes, puros ciúmes por Marina e ódio mortal de
seu rival: e o pensamento em Julião Tavares, um capitalista balofo, vem à mente
do protagonista de forma obsessiva. Quanto à sentimentos de amor, formalmente
são inexistentes em Luís. Sua orientação é a do pessimismo com alguns traços
(não muito frequentes) de trágico-cômico:
“Sou tímido: quando me vejo diante de
senhoras, emburro, digo besteiras. Trinta e cinco anos, funcionário público,
homem de ocupações marcadas pelo regulamento. O Estado não me paga para eu
olhar as pernas das garotas. E aquilo era uma garota. Além de tudo sei que sou
feio. Perfeitamente, tenho espelho em casa. Os olhos baços, a boca muito
grande, o nariz grosso”.
Ademais, há um singular encontro com uma
prostituta esfomeada. Luís passa algumas horas dentro de um quarto sujo com a
mulher, sem qualquer contato sexual, logo rejeitado por Luís, que fuma ao seu
canto. Passam algumas horas conversando. Ao final, quer pagar a prostituta, que
não aceita o dinheiro. Luís da Silva sai com uma prostituta, fica duas horas
num quarto sujo conversando com a mulher e grosseiramente aos gritos obriga a
mulher a receber o dinheiro, já que ela não tem obrigação de ficar escutando
suas lamentações. É um lance que revela sensibilidade de Luís, um temperamento
misericordioso que suprime sua ausência de amor.
Angústia é um dos pontos altos da literatura
brasileira. Seu estilo é seco, sem fraseologia, sem senso comum, com palavras
minuciosamente escolhidas, bem ao estilo do autor. Ademais, dentre as obras de
Graciliano Ramos, é aquela que foi capaz de detalhar os traços íntimos e
psicológicos de modo mais profundo de um personagem: tal análise psicológica
vem por meio do próprio depoimento de Luís da Silva, um homem atormentado e que
aparenta estar sempre remoído por um sentimento de culpa tal como Rodion
Raskolnikon de "Crime e Castigo". É um romance que está no patamar
das grandes obras literárias universais, motivo de orgulho para todos
brasileiros.
Análise da
Profª Vera Dias da obra
O alagoano Gracillano Ramos (1892-1953) é autor de alguns dos
principais romances da literatura brasileira, como 'Vidas Secas" (1938). O
marco inicial de sua carreira, porém, está nos relatórios que redigiu quando
era prefeito da cidade de Palmeira dos índios, entre 1928 e 1930. A forma de
escrever, ao mesmo tempo concisa, critica e irônica, despertou o interesse do
editor carioca Augusto Schmidt, que o animou a publicar "Caetés"
(1933), seu livro de estreia.
Essa obra e as duas seguintes, "São
Bernardo" (1934) e "Angústia" (1936), podem ser consideradas uma
trilogia marcada pelo fato de serem narradas em primeira pessoa, descrevendo
estados de alma de seres em constante questionamento com eles mesmos e com o
mundo.
Em "Angústia", esse sentimento
se faz presente da primeira até a última página de um texto que mostra o
universo psicológico de Luis da Silva. Funcionário público, 35 anos,
trabalhando na Diretoria do Tesouro, em Maceió, Estado de Alagoas, ele escreve
também artigos sob encomenda para jornais com o objetivo de aumentar a renda.
Além disso, vê o noivado com a vizinha, Marina, terminar devido ao poder
econômico do gordo e risonho conquistador de mulheres Julião Tavares, um homem
rico, sócio de uma empresa de secos e molhados.
Angústia e violência
Cada vez mais desgostoso com a profissão e
com a própria existência, Luís tem sua vida transformada com uma atitude
extrema. Ao saber que a sua amada Marina, frívola e fútil, fora seduzida e
abandonada, grávida, e que o concorrente já estava envolvido com outra mulher,
começa a ter a ideia de assassiná-lo - e concretiza a ação por meio de
estrangulamento com uma corda, que ganhara de um mendigo que periodicamente lhe
pedia comida. Em seguida, o coloca pendurado no galho de uma árvore para
simular suicídio.
Essa ação, descrita ao final do livro, é
na verdade o fato motivador de toda a narrativa, pois a angústia do começo da
obra, está fortemente relacionada ao ato violento que cometeu, no qual se
liberta não só do rival afetivo, mas das suas mais variadas frustrações em
relação a si mesmo e ao mundo circundante.
Como é característico de seus textos,
Graciliano oferece um romance marcado por um protagonista dominado pelo
pessimismo e negativismo. Suas análises psicológicas e sociais, acompanhadas
sempre de um estilo despojado e seco, resultam em personagens ensimesmados.
Miséria existencial
Com pouco dinheiro, morando numa casa
pobre de um bairro afastado, Silva tem um histórico de familiares que
aprofundam a sua miséria existencial: o avô Trajano, latifundiário decadente e
bêbado, e o pai Camilo Pereira da Silva, preguiçoso, mas leitor ávido. São
indícios de uma vida sem sentido que vai carcomendo o narrador.
Parágrafo a parágrafo, o protagonista é
assombrado por esses e outros fantasmas de seu passado. Afunda-se num universo
de faltas ao emprego, bebida, fumo e dividas. A economia das palavras desnuda
justamente um triste estar no mundo. Elas atravessam a alma do leitor como um
punhal a mostrar um sofrimento marcado pela desilusão, pelo desgosto e pela
frustração.
O conflito interno do narrador e seu
sentimento de miséria de estar no mundo caracterizam "Angústia" como
um trabalho significativo dentro do universo de Graciliano Ramos, um prosador
ímpar em seu exercício de mostrar a dor com o uso contido e exato da palavra.