O Significado e a Importância do Pio da Coruja
O Pio da Coruja em São Bernardo
Profª Vera Dias
Há obras literárias que nos marcam, às vezes, por um pormenor expressivo, significativo e abrangente de tal modo que se torna o eixo das lembranças que a elas se associam. Quando penso em “São Bernardo”, de Graciliano Ramos, o que primeiro me vem à mente é aquele pio de coruja.
Em “ São Bernardo " surge repetidamente a referência ao pio da coruja, que quase sempre se faz ouvir quando Paulo Honório recorda a sua esposa: Madalena suicidara-se há dois anos por causa do ciúme agressivo do seu marido.
É o emblema da narrativa. No começo, quando nos fala da decisão de escrever suas memórias, o personagem-narrador, Paulo Honório, menciona: “Na torre da igreja uma coruja piou. Estremeci, pensei em Madalena.” E escreve mais adiante: “Abandonei a empresa, mas um dia desses ouvi novo pio de coruja e iniciei a composição de repente, valendo-me dos meus próprios recursos, sem indagar se isto me traz qualquer vantagem, direta ou indireta”.
As superstições populares associam a coruja à morte e à desgraça, mas ela também pode ser representada, em vertentes esotéricas e filosóficas, como um símbolo da consciência, já que consegue enxergar à noite e, com aqueles olhos ferozmente atentos, representaria a vigília e a sabedoria que dela pode advir. Em “São Bernardo”, a coruja tanto é Madalena, mulher que legou a Paulo Honório um remorso fecundo, quanto a obrigação de vigiar, de ter consciência, de dar forma racional – a narrativa - a uma obsessão.
O dito pio aparece no capítulo I: “Na torre da igreja uma coruja piou, Estremecei, pensei em Madalena." (G. Ramos: p.11), e dois: “ Abandonei a empresa, mas um dias destes ouvi novo pio de coruja - e iniciei a composição de repente…" (G. Ramos: p.12). Depois destes dois exemplos não aparece outro pio de coruja até o capítulo XIX, o qual, como os dois primeiros, representa o tempo enquanto Paulo Honório escreve o livro. “Uma coruja pia na torre da igreja. Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piava há dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo…Quanto ás corujas, Marciano subiu ao forro da igreja e acabou com elas a pau." (G. Ramos: p.90-91)
Ainda não sabe o leitor porque Paulo Honório reflete tanto sobre o pio da coruja ou porque este o faz iniciar a composição do livro. Honório segue a sua narrativa e descreve nos capítulos XX até XXXVI a vida na fazenda São Bernardo que esclarecem ao leitor a relação entre a Madalena e o proprietário. Paulo Honório trata mal aos seus empregados e começa, guiado pelo ciúme, a desconfiar de Madalena:
“Qual seria a religião de Madalena? Talvez nenhuma…Mulher sem religião é capaz de tudo…Procurei Madalena e avistei-a derretendo-se sorrindo para o Nogueira…comecei a sentir ciúmes." (G. Ramos: p.116-117)
O ciúme de Paulo Honório aumenta e ao mesmo tempo cresce a sua raiva (“ O meu desejo era pegar Madalena e dar-lhe pancada até no céu da boca…Atormentava-me a ideia de surpreendê-la. Comecei a mexer-lhe nas malas, nos livros, e abrir-lhe a correspondência. Madalena chorou, gritou, teve um ataque de nervos. " G. Ramos: p.122) por Madalena. Ele está alucinado pela ideia de encontrar uma prova que justifique as suas suspeitas e o seu ciúme.
A obsessão culmina no capítulo XXXI, no qual há novamente uma menção de um pio de coruja. Este capítulo é a chave para o leitor perceber o sentido do pio:
Paulo Honório sobe à torre da igreja para procurar e matar corujas, porque “ algumas se haviam alojado no forro, e à noite era cada pio de rebentar os ouvidos da gente." (G. Ramos: p.138)
Lá de cima da torre contempla a paisagem e consegue ver à Madalena escrevendo no escritório. Enquanto “ uma coruja grita" , a curiosidade pelo escrito da sua mulher aumenta o ciúme:
“Em que estará pensando aquela burra? Escrevendo."(G. Ramos: p.138)
Honório descobre no chão uma folha de prosa, com a letra de Madalena, e pensa ter encontrado a prova da infidelidade da mulher.
Cheio de fúria não consegue perceber que a carta encontrada fora dirigida a ele próprio e que não havia outro homem na vida da sua esposa.
[...]
É significativo que um elemento natural, o pio da coruja, desencadeie todo o conflito, isto é, o relato da ruína de suas conquistas pela impossibilidade de compreender o outro, em particular sua mulher, Madalena, que se cansa da luta travada diariamente com seu marido e se suicida: "Na torre da igreja uma coruja piou. Estremeci, pensei em Madalena. Em seguida enchi o cachimbo" (Ramos, 1986, p.9).
A coruja que o faz estremecer traz a lembrança do passado fracassado, da perda de Madalena como única possibilidade de humanização de Paulo Honório. Por isso a escritura do livro São Bernardo representa o refúgio de Paulo Honório, a tentativa de dar novo sentido à vida. Os dois primeiros capítulos são os alicerces de sua propriedade textual. Desta maneira, o livro passa a representar o seu novo fito. Mas este também vai ter que ceder. O elemento que interfere é a coruja, isto é, o confronto entre desejo e destino.
A coruja atormenta Paulo Honório com a lembrança da morte de Madalena, isto é, a perda de controle do seu mundo. A vida tomada como um empreendimento linear que precisava ser bem-sucedido em cada etapa para que no final acontecesse o grande triunfo se bifurca, escapa por caminhos misteriosos e indecifráveis regidos pelo acaso. Ela é o motivo composicional que explica a origem da narrativa, o porquê do livro: "Abandonei a empresa, mas um dia desses ouvi novo pio de coruja e iniciei a composição de repente, valendo-me dos meus próprios recursos..." (Ramos, 1986, p.11). O pio da coruja, assim, reforça a necessidade de contar sua trajetória.
É a partir do terceiro capítulo que o leitor entra definitivamente na história de seu passado. A trama organizada em dois ritmos diferentes de narração nos conta a história primeiramente de maneira objetiva, ou seja, as direções de Paulo Honório de guia de cego a proprietário da fazenda São Bernardo e seus esforços por ganhar dinheiro e alcançar seus objetivos mediante qualquer processo. Isso é feito de maneira sumária e veloz, embora o narrador advirta, depois de contados alguns sucessos: "Ninguém imaginará que, topando os obstáculos mencionados, eu haja procedido invariavelmente com segurança e percorrido, sem me deter, caminhos certos. Não, senhor, não procedi nem percorri" (idem, p39).
É significativo que um elemento natural, o pio da coruja, desencadeie todo o conflito, isto é, o relato da ruína de suas conquistas pela impossibilidade de compreender o outro, em particular sua mulher, Madalena, que se cansa da luta travada diariamente com seu marido e se suicida: "Na torre da igreja uma coruja piou. Estremeci, pensei em Madalena. Em seguida enchi o cachimbo" (Ramos, 1986, p.9).
A coruja que o faz estremecer traz a lembrança do passado fracassado, da perda de Madalena como única possibilidade de humanização de Paulo Honório. Por isso a escritura do livro São Bernardo representa o refúgio de Paulo Honório, a tentativa de dar novo sentido à vida. Os dois primeiros capítulos são os alicerces de sua propriedade textual. Desta maneira, o livro passa a representar o seu novo fito. Mas este também vai ter que ceder. O elemento que interfere é a coruja, isto é, o confronto entre desejo e destino.
A coruja atormenta Paulo Honório com a lembrança da morte de Madalena, isto é, a perda de controle do seu mundo. A vida tomada como um empreendimento linear que precisava ser bem-sucedido em cada etapa para que no final acontecesse o grande triunfo se bifurca, escapa por caminhos misteriosos e indecifráveis regidos pelo acaso. Ela é o motivo composicional que explica a origem da narrativa, o porquê do livro: "Abandonei a empresa, mas um dia desses ouvi novo pio de coruja e iniciei a composição de repente, valendo-me dos meus próprios recursos..." (Ramos, 1986, p.11). O pio da coruja, assim, reforça a necessidade de contar sua trajetória.
É a partir do terceiro capítulo que o leitor entra definitivamente na história de seu passado. A trama organizada em dois ritmos diferentes de narração nos conta a história primeiramente de maneira objetiva, ou seja, as direções de Paulo Honório de guia de cego a proprietário da fazenda São Bernardo e seus esforços por ganhar dinheiro e alcançar seus objetivos mediante qualquer processo. Isso é feito de maneira sumária e veloz, embora o narrador advirta, depois de contados alguns sucessos: "Ninguém imaginará que, topando os obstáculos mencionados, eu haja procedido invariavelmente com segurança e percorrido, sem me deter, caminhos certos. Não, senhor, não procedi nem percorri" (idem, p39).